Antes de construir ou reformar, um bom projeto de arquitetura pode levar à tomada de consciência da real necessidade de comprar certos materiais ou substituir os existentes no imóvel. Muitas vezes, a melhor solução está no restauro ou retrofit, no reúso ou reaproveitamento, que valorizam a beleza imperfeita dos materiais e sua história.
Sobretudo, ajudam a reduzir os entulhos nos canteiros de obras, um dos grandes vilões do ambiente urbano, segundo a Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos da Construção Civil e Demolição (Abrecon). “A construção civil é a maior fonte de poluentes do planeta, seja pela geração de entulho, seja pela produção de concreto”, diz o arquiteto Vitor Penha. Conforme o Green Building Council Brasil, o setor é responsável por um terço dos gases lançados na atmosfera.
O arquiteto Gustavo Calazans defende a redução de construções com concreto. “O sistema construtivo com estrutura metálica e madeira são mais leves e inteligentes porque geram menos resíduos. Os materiais são caros, mas o projeto é racionalizado”, afirma. “As pessoas não gostam do drywall pois o consideram frágil. Precisa mudar essa cultura que prefere a construção pesada do concreto armado.”
Para o arquiteto Lula Gouveia, do SuperLimão Studio, reduzir a quantidade de material é a resolução do momento. “Nós fazemos projetos de casas apenas com o necessário e que possam ser recicladas”, diz. “Pesquisamos na arquitetura vernacular, que, com poucos elementos, resolve várias questões.”
A obra sustentável envolve a contratação da mão de obra e a escolha de materiais da região, buscando o menor impacto ambiental ou o impacto positivo. “No Brasil, precisamos pensar em materiais como o tijolo feito perto da obra. Ou nas estruturas pré-fabricadas. O desperdício é mínimo na instalação das vigas de aço”, diz o arquiteto Tito Ficarelli, do escritório Arkitito.
“A indústria tem capacidade de aproveitar as sobras das peças mais difíceis de descarte na obra.” O mesmo acontece com as telhas termoacústicas, tipo sanduíche. “Como são feitas sob medida, não geram entulho”, acrescenta Lula. “Entender esses elementos com novas tecnologias é essencial em uma obra sustentável.”
O arquiteto Leonardo Shieh acredita que uma construção sustentável é o equilíbrio de três “Es”: ecologia, economia e equidade social. Além da questão ambiental, existe a ética no sistema construtivo. “Alguns materiais têm ciclo curto de vida, mas são econômicos. A obra pode causar impacto positivo nos empregos locais, capacitando trabalhadores com nova técnica construtiva”, afirma. Em seu projeto para a Escola Waldorf, a escolha da taipa de mão permitiu a participação dos pais dos alunos na obra.
“A terra é um material disponível em todo lugar, e como o terreno é alugado, as paredes podem ser demolidas e o material voltar para a natureza”, conta. “As peças de madeira parafusada podem ser montadas em outro lugar. A história não se encerra ali.” Segundo ele, a empresa Taipal faz casas de taipa de pilão mecanizada com tecnologia moderna. E sugere ainda a construção com fibra de bambu como alternativa sustentável.
“Invista e projeto de arquitetura atemporal e bem resolvido que é perene, logo sustentável.”” – Gustavo Calazans
A obra sustentável começa na elaboração do projeto. “Com as características do local e a estética bem resolvida com o cliente, a casa não precisará ser remodelada ou demolida a curto prazo”, diz o arquiteto Omar Fernandes, do escritório Olaa.
“É como um móvel de madeira. Se não funciona ou quebra logo, vai para o lixo em pouco tempo. Mas se for bem projetado e executado com material de qualidade, vai durar para sempre e ser tratado como obra de arte, como são os clássicos do design. Ninguém vai descartar.” A busca é pelo material atemporal, que dura mais de 20 anos e não perde valor.
As madeiras e as pedras podem ser mais sustentáveis porque têm baixo consumo de carbono e de energia em sua produção e na implantação na obra. Mas é preciso avaliar como é realizada sua extração, o gasto de combustível para o transporte e a durabilidade a longo prazo de uso. “Se tiverem de atravessar o oceano para chegar até a obra, deixam de ser.
Por outro lado, podem ser eternas em uma casa”, diz Omar, que gosta de usar nos acabamentos o alumínio. “Gasta muita energia na produção, mas é leve para transportar e rápido para implantar. Não precisa de manutenção, como repintura, e é 100% reciclável.”
Com o manejo sustentável, a madeira pode ser retirada das florestas de forma legal sem degradar o meio ambiente. “Quando é usada em um móvel ou na construção de uma casa, fica para sempre. Mas hoje a tendência é a madeira de reflorestamento”, diz Omar. Na maioria de suas obras, ele reaproveita madeiras de demolição e usa pedras da região. “Além de não depender de transporte que causa impacto ambiental, deixam a casa em harmonia com a linguagem do lugar.”
As pedras e as madeiras podem ser usadas em estado bruto, sem acabamento. “Como a arquiteta Lina Bo Bardi dizia: ‘Nunca procurei a beleza, mas sim a poesia’. Por que esconder as marcas do concreto?”, lembra Leonardo.
“Em relação à madeira, não lixo nem envernizo.” Para Hélio Olga, a madeira boa é a dura, como o cumaru, pois não precisa de tratamento. “Pode ficar no tempo que envelhece bem. Muda de cor conforme o clima. O apreço pelo envelhecimento natural evita fazer manutenção e reforma na casa.”
Em toda obra é preciso valorizar o que tem de bom no imóvel antes de sair demolindo, segundo Lula. “Desconstruímos a casa e aproveitamos ao máximo os materiais. Assim ganhamos de três maneiras: não pagamos para jogar o entulho em caçambas, não gastamos comprando de novo e conseguimos a estética do material com história, que era feito para durar mais tempo”, afirma o arquiteto.
“Muitos materiais antigos são superiores aos novos. Tem madeiras que não existem mais, como a peroba-rosa, e tijolos densos, que podem ser usados até na estrutura da casa.”
Em uma demolição, a estrutura de um telhado de madeira pode ser usada de forma inteligente em outra obra, como um pergolado ou móvel. Omar Fernandes conta que fez o madeiramento do telhado do espaço gourmet de uma casa de campo em Avaré, em São Paulo, com a peroba que retirou dos telhados de duas casas demolidas da mesma família na cidade.
“Deixei à mostra a estrutura do telhado que tem história: vem da casa onde o proprietário passou a infância”, diz o arquiteto. “A madeira de demolição não precisa ficar com o aspecto de velha. Pode ser lixada que volta a parecer nova.”
“No restauro ou no retrofit, é preciso pensar o projeto sensorial, que vai além do que os olhos enxergam.”” – Vitor Penha
O restauro não é necessariamente barato. A mão de obra especializada costuma ser cara . “O maior erro é pensar que está economizando”, diz o arquiteto Vitor Penha, diretor de arte na incorporadora Somauma, especializada em retrofit. Ele conta que, ao restaurar os tacos de perobinha de um apartamento, descobriu que o contrapiso não estava bom.
Além de pagar pela remoção e pela higienização dos tacos, teve o gasto com a adequação do contrapiso para recolocá-los. O custo foi o mesmo de colocar piso novo de madeira. “A ideia do restauro não é fazer uma obra econômica. É pensar que, ao não descartar os tacos, deixamos de gerar entulho que polui o planeta”, afirma Vitor.
Mas o reúso ou o restauro envolvem outras questões. “Ao trocar a persiana de madeira por uma de alumínio, você perde o charme do barulho e do peso ao abri-la, além da diferença na estética dos dois materiais. No restauro precisa pensar o projeto sensorial, que vai além do que os olhos enxergam”, explica Vitor.
“A de alumínio pode ser mais funcional, mas, ao retirar a de madeira, abrimos mão de outros estímulos.” Segundo ele, as pessoas acham mais fácil arrancar tudo o que existe para colocar o novo. “Os arquitetos pensam só em agradar os olhos dos clientes. Falta o olhar curioso para ver o que pode ser aproveitado.”
Em seus projetos, Vitor procura resgatar a história na beleza imperfeita. “É preciso pensar a beleza em todos os estímulos, no conjunto que se forma, nas imperfeições que o restauro oferece. Entender que se está construindo a história ou a memória afetiva para quem vai viver naquele espaço”, diz o arquiteto.
No retrofit de um prédio, ao retirar o forro de gesso, ele se deparou com um madeiramento de pinho, que encaminhou para novos marceneiros produzirem design. “Eles vão fazer móveis com essa madeira de reúso. Dar novo significado para essa existência.”
Enquanto o restauro busca resgatar o original em uma reforma, o retrofit faz o reúso com um novo conceito. “A ideia do retrofit é ressignificar algo, dando novas formas de uso ou tornando-a contemporânea”, diz Vitor. “É uma tela ampla para receber as propostas de um criador. Em um apartamento, posso colocar um bar antigo que tem história e outros móveis contemporâneos.”
Para Lula, o retrofit é a coexistência do antigo e do novo. “O custo maior em reinterpretar e ressignificar os materiais é o dos neurônios”, brinca. “Pagamos a mão de obra que faz o restauro com o dinheiro que seria gasto se comprasse o novo.” Se os tacos estão finos para serem restaurados, ele os usa para revestir uma parede ou criar outro elemento.
“Um bom caminho é olhar o potencial dos materiais antigos para ver como podem ser reaproveitados”, diz Lula, que valoriza luminárias e metais de latão e cobre, materiais nobres.
O SuperLimão realizou um projeto de retrofit que transformou um galpão em área de lazer no litoral norte de São Paulo. No processo, todos os materiais foram reutilizados. “A madeira mais dura da estrutura do telhado foi aproveitada na cobertura de Alwitra, que tem tecnologia moderna”, conta Lula.
O restante da madeira virou bancos. As telhas de cerâmica foram trituradas e agregadas à massa das paredes. “Em vez de blocos, fizemos as paredes com o entulho e empregando mão de obra local, que saiu com aprendizado. Pouco foi comprado ou veio de fora. Mantivemos os pilares, economizando 20% da obra.”
O consumo consciente precisa abranger a arquitetura e fazer pensar duas vezes antes de realizar uma reforma: o que estou descartando? Aproveitar o já construído é um gesto de sustentabilidade. “Se quiser novos acabamentos, evite o modismo. Os banheiros ficam datados e revelam a idade do imóvel”, diz Leonardo.
“As pessoas trocam os revestimentos por peças da moda, depois enjoam e fazem nova reforma para substituí-los”. Ele sugere escolher peças neutras, sem grafismos. “Em casas, os acabamentos precisam ser atemporais para não ficar com cara de antiga em pouco tempo”, diz Omar.
Nas reformas, Tito procura convencer os clientes a não trocar o piso. “Precisa respeitar o tempo de duração do revestimento”, diz. “Como atitude sustentável, manter é o mais importante.” O uso de piso sobre piso pode ser uma solução para não gerar entulho em uma reforma, mas precisa ver se o nivelamento não impossibilita a colocação.
“Existem opções de argamassa e porcelanato com tecnologia para isso”, diz Omar. A espessura deve ser mínima para não ter excesso de peso se for em apartamento. “Se precisar retirar o piso e refazer o contrapiso, a reforma fica mais cara do que uma obra do zero”, acrescenta.
Para não descartar o entulho em caçamba, Omar sugere usar o material da demolição em área que precise ser aterrada, economizando na compra de terra. “As perdas de material que geram entulho são consequências do projeto”, diz o arquiteto. “A pedra em paginação de canjiquinha, que precisa ser esculpida, é 30% jogada fora na quebra. É mais sustentável usar a pedra bruta, que evita o desperdício.”
Pelo mesmo motivo, os blocos estruturais são mais recomendados para erguer as paredes. “O aproveitamento é total ao contrário dos tijolos porque não podem ser recortados. São comprados em quantidade certa nas medidas do projeto”, diz Tito.
Outra forma de não gerar entulho são as instalações elétricas e hidráulicas aparentes. “Além de não rasgar as paredes para embutir as tubulações, colocando tudo externo, evita-se que no futuro precise quebrá-las toda a vez que for necessário manutenção.
Gasta-se menos com tinta e massa corrida na repintura”, diz Vitor Penha. Já Tito lembra a longevidade das janelas de alumínio. “Elas podem ser usadas em outro lugar da casa ou em outra obra, em vez de ser descartada. E se for, o material delas é reciclável.”
A exigência que os apartamentos tenham revestimentos para receber o Habite-se das prefeituras leva algumas construtoras a usar acabamentos baratos, que podem não agradar o morador. A maioria troca depois por materiais de melhor qualidade. Isso aumenta a quantidade de entulho nas cidades. A saída é mudar a legislação, segundo os arquitetos.
Mas o que mais gera entulho nas obras são as placas de madeirite usadas nas caixas de concretagem, que não são reaproveitadas. “Existem as formas plásticas e metálicas, que são alugadas e custam caro. Só valem a pena usar em grandes obras”, afirma Gustavo.
Alguns tipos de revestimentos e tijolos são desperdiçados nos recortes. “Precisa ter cuidado no descarte: blocos, cerâmicas, pedras e cimento são colocados em caçamba que vai para um tipo de aterro, onde podem ser reutilizados. Os restos de madeira que se decompõem vão para outro”, diz Omar. A maior preocupação é com os produtos que causam maior impacto no meio ambiente. “O problema está nos produtos químicos que contaminam o solo. Por isso, é importante utilizar tintas à base de água nos acabamentos.”
Na reforma, quanto menos interferir, melhor. “Sempre segui a linha do concreto aparente e do restauro de pisos de madeira, que dá trabalho e custa caro. Outro limitante: marceneiro odeia reformar armário. Por isso vai tudo para o lixo ou mantém o original”, conta Gustavo. “É preciso desenvolver a tolerância ao antigo. Por que demolir tudo e fazer novo?”, diz. “O projeto bem resolvido é perene, logo sustentável. Invista no projeto atemporal, de qualidade, para morar nos próximos 20, 30 anos sem descaracterizar.”
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por MARILENA DÊGELO, Casa e Jardim
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