Edifícios sustentáveis e autossuficientes nas questões energética e hídrica estão deixando de ser apenas sonho. Apesar de ainda ser pequeno, mercado cresce e conta com iniciativas que visam desenvolvê-lo.
À primeira vista, dar adeus à conta de luz ou de água parece um sonho distante. Mas essa já está sendo a realidade de cada vez mais edifícios no país. São os chamados Net Zero: edifícios inteligentes e eficientes que, graças a investimentos e visão de futuro, se tornaram autossustentáveis energética e/ou hidricamente. Engana-se quem pensa que esse é um processo viável apenas a edifícios. Os Net Zero têm se espalhado pelos mais diversos segmentos do mercado, se tornando mais acessíveis e economicamente atrativos inclusive para residências. Tanto é que o GBC Brasil, atento à importância dessa iniciativa, se uniu a um programa global que visa zerar as emissões de carbono vindas do setor da construção civil. A organização, com o apoio do World Green Building Council e diversas outras instituições, pretende fazer com que todas as novas edificações e grandes reformas no país se tornem Net Zero, atingindo 100% desses segmentos até 2050.
É crescente o número de edifícios e residências brasileiros que estão descobrindo o quão vantajoso pode ser possuir um sistema local de geração de energia. Dados recentes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), destacaram que cerca de 7,5 mil unidades brasileiras são abastecidas por microgeração de energia fotovoltaica. Isso representa um aumento de cerca de 300% em relação a 2015, quando o Brasil registrava cerca de 1,8 mil dessas instalações.
Esse maior acesso à energia renovável é um dos impulsionadores ao aumento do número de Net Zero Energia no Brasil. Márcio Takata, engenheiro e diretor da Enova Solar, explica que Net Zero Energia é um “conceito utilizado para edifícios (casas, edifícios comerciais ou industriais) no qual o balanço energético é zero. Isso quer dizer que toda a energia que é consumida no local é também gerada no local”.
Embora a energia solar seja o meio mais comumente usado pelos Net Zero brasileiros, ele não é o único. Márcio lembra que, além da energia solar, “também pode-se criar um sistema de geração eólica, utilizando microturbinas eólicas, ou até uma usina que utiliza biomassa”. Tudo depende do tipo de edifício e das necessidades de seus ocupantes.
A Enova Solar, empresa da qual Márcio é engenheiro e diretor, está localizada num edifício Net Zero Energia. “Aqui instalamos medidas de eficiência energética. Boa parte da iluminação é led. Fizemos também algumas adequações na parte de geração, instalamos uma usina solar com uma potência total de 3,5 quilowatts e com isso conseguimos ter um abatimento global da energia. Somos uma empresa com 10 pessoas trabalhando e pagamos apenas 25 reais de conta, que é a tarifa mínima”, explica.
Estudar cuidadosamente cada caso é a chave para desenvolver um bom projeto Net Zero. Engana-se quem pensa que apenas instalar um sistema fotovoltaico já garante o fim dos problemas com o uso de energia elétrica. A questão o uso inteligente e eficiente da energia gerada por esse sistema é a chave para o sucesso de um sistema in loco de geração. Guido Petinelli, diretor da Petinelli Consultoria, exemplifica esse aspecto da seguinte maneira: “Se o prédio consegue se tornar mais eficiente a ponto de gastar metade da energia que antes gastava, por exemplo, significa que será necessário instalar um sistema de painéis com metade da capacidade do que seria necessário sem a eficiência energética. Isso torna a viabilidade muito mais próxima da realidade dos edifícios”, explica.
A Petinelli, escritório de engenharia sustentável com sede em Curitiba, Paraná, é um dos maiores escritórios com experiência em Net Zero no país. A Creche Hassis (SC), o edifício Eurobussiness (PR) e a sede da RAC Engenharia (PR) são apenas alguns exemplos de edifícios Net Zero desenvolvidos pelo escritório. Ambos são, além de Net Zero, certificados LEED Platinum.
Um dos maiores mitos que rondam a questão da geração de energia in loco é que os custos serão altíssimos e inviáveis. “Energia renovável é um investimento cada vez mais atrativo, mas a sociedade ainda tem o pré-conceito de que se trata de algo caríssimo. Mas não é! Pelo contrário, é uma solução que faz bastante sentido para muitos perfis de edifícios”, explica Márcio Takata, da Enova Solar.
É difícil prever quanto custará um sistema de geração de energia, já que isso depende de muitos fatores como quantidade de energia que precisará ser gerada, espaço disponível para instalação da estação de geração e tipo de tecnologia escolhida. Mesmo assim, Márcio Takata faz uma estimativa de gastos, baseada em sua experiência à frente da Enova Solar, referência na construção desses sistemas: “O investimento varia bastante, mas digamos que será a partir de R$18 mil. Uma residência padrão vai investir mais ou menos isso. Mas, à medida que falamos de residências ou edifícios maiores, o valor vai aumentando. Um edifício comercial, por exemplo, vai precisar investir algo em torno de R$70 mil. Esse investimento não está tão relacionado ao tamanho do edifício, mas sim ao consumo de energia. Por isso a importância de trabalhar a eficiência energética”, explica.
Guido Petinelli exemplifica o investimento necessário somando-o ao valor da obra do edifício: “Dez anos atrás, falávamos que um prédio Net Zero poderia elevar entre 10 e 15% o custo de obra. Hoje em dia, essa porcentagem cai para no máximo 6% de custo adicional. Mas isso só será possível se eficiência energética e geração forem trabalhadas juntas e de uma maneira inteligente”.
Estimar um prazo para o retorno do investimento também não é tarefa fácil. Márcio Takata elenca alguns fatores que condicionam essa estimativa:
Márcio conclui dizendo que “de um modo bastante generalizado, o retorno do investimento varia de 5 a 12 anos”.
Com cerca de 12mil m², a Creche Hassis, em Florianópolis é um exemplo de como edifícios públicos também podem aproveitar dos benefícios das políticas Net Zero. Construída com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Creche é Net Zero energia graças a um sistema de geração de energia fotovoltaica instalado no telhado da instituição.
O projeto, de autoria da Petinelli, foi inaugurado em março de 2015 e recebeu a certificação LEED Platinum. Ele possui dez salas de atividades, além de espaços com acessibilidade, um refeitório, bosques com espécies nativas, horta e um parque.
O sistema de geração de energia instalado no local possibilita uma economia mensal de cerca de R$ 2 mil reais. A energia solar gerada no sistema da unidade também é utilizada para aquecer água potável, que vai para chuveiros, cozinha e lavanderia. A preocupação com o uso racional da água também se manifesta no sistema que capta água da chuva e a utiliza nas torneiras do jardim e nos vasos sanitários da creche.
Por produzir mais energia do que gasta, a creche envia o excedente de energia para a rede pública de distribuição, em troca de créditos que poderão ser usados no abatimento de contas de energia de outros edifícios públicos da cidade.
Esse procedimento, aliás, é adotado por muitas Net Zeros no país, já que a legislação brasileira permite essa troca de créditos entre microprodutores de energia e a rede pública de abastecimento elétrico. “É um projeto espetacular, especialmente por se tratar de um prédio público”, diz Guido Petinelli, salientando que instituições públicas também podem – e devem – investir em energia renovável.
A Creche Hassis contou com investimento de cerca de R$ 4,4 milhões. Desses, R$ 2,5 milhões vieram do Governo Federal, sendo R$ 1,8 milhão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e R$ 695 mil do salário-educação. Também houve contribuição do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que investiu R$ 1,9 milhão.
Não há dúvidas de que a maioria dos que já ouviram falar em Net Zero associam o termo à geração de energia elétrica. O que muitos não sabem é que um edifício também pode ser Net Zero Água, e que esse tipo de empreendimento está crescendo no país. “Quando falamos em Net Zero água, falamos de empreendimentos que tem de cumprir dois critérios: o primeiro é não utilizar fontes convencionais de água, ou seja, não depender da concessionária para fornecer água potável ao edifício. O segundo é tratar o esgoto gerado pelo edifício, ou seja, nada do que é produzido de esgoto por esse edifício sai de suas dependências, tudo deve ser tratado ali mesmo”, explica Guido Petinelli.
Para viabilizar um edifício Net Zero Água, o primeiro passo é buscar uma fonte hídrica alternativa, que pode ser captação de água da chuva ou extração de água de um poço autorizado, por exemplo. O empreendimento também precisará encontrar uma maneira de tratar o esgoto gerado. Isso poderá ser feito por meio de uma estação interna de tratamento ou através de um sistema simples que está cada vez mais popular: os Wetlands construídos.
Wetlands são tanques de tratamento natural do esgoto (chamado de água negra). Basicamente são buracos, de cerca de 1 metro de profundidade, impermeabilizados com materiais geossintéticos e dotados de uma rede hidráulica e de um meio filtrante, geralmente brita ou seixo. Após a montagem, há um trabalho de paisagismo, integrando perfeitamente o Wetland à paisagem do local. O esgoto tratado por um Wetland produz água que tem condições de reuso, podendo ser utilizada em irrigação de jardins e em lavagem de locais comuns, por exemplo.
Construído sob consultoria da Petinelli, o edifício Eurobusiness está localizado em Curitiba, Paraná, e recebeu a certificação LEED Platinum, por sua alta eficiência e preocupação com questões ambientais. O que chama a atenção no empreendimento é que ele é Net Zero Água, ou seja, capta internamente toda a água que consome e trata o esgoto excedente. “O prédio é abastecido por um poço, que é devidamente homologado. Além disso, o edifício trata e filtra 100% do esgoto gerado num sistema in loco que aplica o conceito de Wetlands”, salienta Guido Petinelli.
No projeto do edifício está especificado que “o sistema foi dimensionado para tratar 8m³ por dia e atende para água de reuso o CONAMA 357 Classe1 e para água potável à Portaria 2914 de 2011. Dessa forma, o balanço hídrico calculado entre demanda, geração e reuso de água qualificou o edifício como Net Zero Água, quando o edifício é autossuficiente hidricamente, com o abastecimento da concessionária pública somente para backup”.
As adequações que o edifício Eurobusiness realizou em seu projeto para se tornar certificado LEED possibilitaram que o empreendimento consumisse 50% menos energia e 80% menos água (se comparado ao que um edifício comum de mesmo porte gastaria). O edifício alcançou 83 pontos na certificação LEED, lhe garantindo a categoria Platinum.
Essa foi a pergunta feita tanto à Guido Petinelli quanto a Márcio Takata. E as respostas dos dois concordam num aspecto: falta derrubar a barreira do preconceito. “A maior parte do mercado ainda não percebeu que houve uma redução drástica no preço desses equipamentos e que quando a eficiência energética é bem trabalhada e aliada a um sistema de geração inteligente, o período de retorno [do investimento] é rápido”, explica Guido Petinelli.
Takata salienta ainda outro ponto fundamental para o desenvolvimento dos Net Zero no Brasil: a necessidade de se criar programas públicos de financiamento. “O investimento inicial nesse tipo de tecnologia não é pequeno, afinal a maioria dos brasileiros não têm 20 mil reais imediatamente disponíveis para instalar um sistema de energia solar. Por isso, se houvesse uma linha de financiamento compatível com esse tipo de público, certamente muito mais gente optaria pela energia solar”.
Ao regulamentar a microgeração de energia e o fornecimento de crédito a produtores que queiram “repassar” a energia excedente à rede elétrica pública, o governo sinaliza que pretende expandir essa tecnologia pelo país. A Aneel espera que a geração de energia, especialmente a solar, se torne cada vez mais acessível e projeta que no ano de 2024, mais de 1,2 milhão de consumidores passarão a produzir sua própria energia no Brasil, o que equivale a cerca de 4,5 gigawatts (GW) de potência instalada. Num país solar e de proporções continentais como o Brasil, há potencial para que esses números só aumentem.
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Matéria retirada da última edição da Revista GBC Brasil.