Ricardo Cardim: "Porque defendo retirar as palmeiras invasoras do Parque Trianon"
Publicado em 19 . 09 . 2017
“Amargo é o remédio, mas é ele quem vai salvar o doente”. O doente, nesse caso, é o querido Parque Trianon ou Siqueira Campos, na Avenida Paulista. Pedacinho da antiga mata do Caaguaçú, ou “mata grande” em tupi, constitui o último trecho de Mata Atlântica original na região central da metrópole. Até dois séculos atrás fazia parte de uma extensa floresta, com antas, onças, macacos, cervos, catetos e muitos outros vivendo juntos a enormes jequitibás, perobas, cambucis, no ponto mais alto da então cidadela de São Paulo. Formavam um ecossistema equilibrado, interdependente, com o jatobá contando que a anta comesse seus frutos para quebrar no seu estômago a dormência das sementes e germinar uma nova árvore. Pouco antes de virar Avenida Paulista, seu antigo dono Paim Vieira, da Chácara do Capão, escreveu: “Era uma imensa floresta, povoada por abundante fauna“. Quando a cidade derrubou a floresta, expulsou seus bichos, e deixou somente um vestígio do Caaguaçu. Rapidamente se pôs a modificar sua natureza, trazendo paisagistas europeus que plantaram espécies estrangeiras em moda na Europa para combinar com a arquitetura das casas, copiadas das cidades do outro lado do oceano. Assim também foi feito com os jardins das casas, e uma paisagem européia surgiu onde pouco tempo antes foi o berço da Mata Atlântica paulistana.
A “mata grande” dos índios cedeu lugar a pinheiros e plantas européias, criando uma paisagem que poderia estar em Berlim, Paris ou Londres. No fundo, o Trianon.
Com a cidade virando metrópole no século passado, poucos atentaram para a Mata Atlântica do Trianon. Os olhares estavam no progresso, nos carros, nos edifícios. Enquanto isso, não havia mais nenhum bicho para plantar as sementes de jatobá, de palmito jussara, e de tantas outras que foram sumindo, e nem eles podiam alcançar a floresta trazendo novas sementes dos arredores. Os ventos agora canalizados por construções, derrubavam as mais antigas e altas árvores. Eucaliptos australianos tiravam o sol das plantas nativas, enquanto as ornamentais exóticas, o espaço. O ar ficava cada vez mais seco. Os últimos pássaros e pequenos mamíferos não adaptados a cidade, eram caçados e mortos por gatos e cães domésticos. Inviabilizado como pequeno fragmento de mata tropical, seu ecossistema foi gradativamente e silenciosamente se deteriorando. Para o visitante amigo da natureza, estava tudo bem, a mata continuava com suas árvores e arbustos, e agora mais bonita, “civilizada” pelo paisagismo da moda. Assim, sumiram os pássaros restritos a Mata Atlântica e entraram os generalistas, aqueles que conseguem viver nas hostis
A palmeira australiana seafórtia no Vale do Anhangabaú no começo do século XX.
condições urbanas e se alimentam de muitas coisas diferentes. Ao mesmo tempo, nos jardins sofisticados da cidade uma palmeira de origem australiana entra na moda e participa dos mais sofisticados jardins, a seafórtia (Archontophoenix cunninghamii). Não se sabia na época que era uma espécie invasora, e nem que isso existia. Nos anos 1990, o Parque Trianon, dormitório dos pássaros generalistas, está com o seu solo forrado de sementes e mudas da palmeira seafórtia, que sem inimigos naturais, um clima mais propício que sua terra natal, e com amplos espaços livres dentro da floresta deixados pelas espécies que sucumbiram ou foram cortadas, se desenvolve rapidamente. Em poucos anos alcançam porte e formam uma densa copa, que sombreia a mata abaixo. As mudas das árvores nativas ainda sobreviventes a todas essas agressões lutam para resistir a competição por água, luz e nutrientes com o “tapete” de palmeiras australianas que vai se formando e ocupando progressivamente o espaço que já foi dos palmitos-jussara, ingás, angicos e muitos outros. Para os usuários desavisados, aquele denso palmeiral esbelto, de sombrio verde-escuro, vigoroso e cada vez mais denso significa a pujança da mata tropical, e um motivo de deleite. Na primeira década do milênio, a palmeira seafórtia torna-se a senhora do sub bosque do Trianon. Nesse momento o fragmento do Caaguaçu vira um doente terminal. Sua Mata Atlântica não resiste mais ao histórico de um século de agressões, descasos e isolamento. Em cada verão, caem árvores seculares que não conseguiram deixar descendentes. Ano passado foi um enorme jequitibá-branco na cerca da Al. Casa Branca. O sub bosque, cada vez mais pobre pelo excesso de sombra das seafórtias e falta de novas sementes, vira apenas um tapete de folhas com plantas comuns de paisagismo. Se nada for feito, e as palmeiras exóticas não forem removidas rapidamente, como é feito em muitos lugares do mundo onde a sociedade e técnicos se mobilizam pela preservação de seus “museus vivos” da natureza ancestral, nossos filhos e netos terão apenas uma floresta de palmeiras australianas. Sem Mata Atlântica. Sem jequitibás e perobas. Não é previsão alarmista, isso ocorreu na Mata Atlântica da USP da Cidade Universitária, veja a foto de satélite abaixo:
Como tirar as palmeiras? Quando em 2010 se cogitou remover as seafórtias da reserva de Mata Atlântica da Cidade Universitária da USP ocorreu uma breve polêmica e reações emocionais entre as pessoas menos informadas, e isso estimulou diversas pesquisas de cientistas do Instituto de Biociências para comprovar o extenso dano que estava ocorrendo para a sobrevivência da floresta nativa. Assim, com os claros resultados obtidos, o governo removeu todas as palmeiras seafórtias adultas em 2011 e as substituíram por 120 espécies nativas. Como aluno de mestrado no local na época, testemunhei todo o processo e vi a Mata Atlântica renascer sem as palmeiras invasoras, voltando a receber sol no interior da mata e despertar seu banco de sementes, brotando muitas espécies nativas antes “afogadas” pela invasão. Passados 6 anos, ver a mata da USP hoje é muito diferente. É uma Mata Atlântica típica, mais saudável, em sua dinâmica e perpetuação natural.
Remoção da palmeira invasora, com dano mínimo ao ecossistema e plantio de mudas nativas em 2011 na USP.
Outro aspecto importante é que a fauna não passará fome sem a seafórtia, pesquisadores descobriram que seus frutos são praticamente nulos de elementos nutritivos. Ela apenas “engana” o pássaro generalista com sua cor vermelho vibrante. No Trianon, a troca da palmeira invasora australiana será por plantas que ocorriam na região séculos atrás, como o palmito-jussara (Euterpe edulis), palmeira nativa e ameaçada de extinção da nossa Mata Atlântica que séculos atrás foi muito abundante nessa floresta – e os pássaros adoram. Para isso, uma verdadeira “operação cirúrgica” será realizada junto a profissionais e pesquisadores, extraindo cuidadosamente as palmeiras invasoras e as substituindo por espécies nativas mantendo ao máximo a integridade da floresta. Embora as seafórtias sejam bonitas, lhes asseguro que a Mata Atlântica bem preservada vence de forma disparada em beleza e encanto aos olhos. E mais, o Trianon não é nosso. É de nossos filhos e netos, e devemos passá-los a eles como o testemunho de Mata Atlântica que é. Por isso é que desde 2014 junto com a ONG S.O.S. Mata Atlântica trabalho e estou como consultor para essa medida e restauração do parque. Em 2008 fiz um artigo sobre o problema. Esse “amargo remédio” nos faz lembrar que a responsabilidade de tudo isso é nossa. Da arrogância humana de achar que pode “embelezar” uma floresta que demorou milênios para se formar, com toda uma fauna e flora interdependentes. Que pode trazer plantas e bichos de longe por mero capricho ou status em jardins sem ter consequências terríveis. A invasão biológica é tema tão sério, que hoje é considerada a segunda maior causa da perda de biodiversidade no planeta, só perdendo para a destruição direta dos habitats, causada por instrumentos como fogo e tratores.
Ricardo Cardim, Professor do curso do GBC Brasil sobre Paisagismo Sustentável, Mestre em Botânica pela Universidade de São Paulo (USP) e Diretor da Cardim Arquitetura Paisagística.
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