Não podemos mais ignorar os impactos que nossas ações cotidianas têm sobre o meio ambiente. De uma dimensão individual às políticas públicas, passando pelas decisões tomadas por profissionais de paisagismo, decoração e arquitetura, é preciso repensar a convivência com o verde. Nas palavras do botânico e paisagista Ricardo Cardim: discutir o relacionamento que temos com nossa natureza, enquanto país.
Mestre em Botânica pela Universidade de São Paulo e diretor da Cardim Arquitetura Paisagística, ao lado da sócia e esposa Alessandra, ele defende que uma maneira de contribuir com tal transformação é priorizar, no paisagismo, plantas nativas do Brasil. A razão para essa defesa é complexa e tem várias camadas: os impactos diretos e indiretos da incorporação desmedida de espécies estrangeiras nas casas e cidades brasileiras, a erosão cultural e consequente desvalorização das espécies nacionais e a iminente destruição de solo, flora e fauna causadas pelo desequilíbrio ambiental em pequenos e gigantescos ecossistemas.
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Idealizador da técnica de “Florestas de Bolso” da Mata Atlântica, plantadas por mutirões voluntários em áreas públicas de São Paulo, Cardim apresenta, em entrevista a HAUS, que aspectos deste delicado desequilíbrio o levaram a escrever um livro que considera “ativista”. Paisagismo sustentável para o Brasil: integrando natureza e humanidade no século XXI, lançado no dia 22 de junho no Museu da Casa Brasileira, aborda de forma ampla a relação entre natureza e humanidade no Brasil, país detentor da maior biodiversidade nativa do planeta, mas onde cerca de 90% da população vive em áreas urbanas.
Quando comecei a pensar este livro, eu era professor de paisagismo no Green Building Council, e os alunos perguntavam se não havia um livro que ensinava paisagismo no país. Tudo o que eles encontravam na livraria era de origem estrangeira, traduzido para o Brasil, e trazia coisas absurdas do tipo “como plantar uma árvore de neve” no Brasil. Isso me levou a fazer uma apostila e, em 2015, tive a ideia de fazer o livro. Demorou sete anos para o livro nascer, porque ele está todo referenciado em ciência, tem 698 referências bibliográficas. Acredito que você pode discutir opinião, mas ciência só se discute com ciência. Então é um livro que ocupa um espaço fundamental e provoca uma reflexão: herdamos essa natureza incrível, temos cidades horríveis do ponto de vista de saúde, como equilibrar isso em um século onde a preocupação com o meio ambiente deixa de ser moda e passa a ser um fato?
Brinco um pouco que o livro é uma DR. Uma discussão da relação entre natureza e humanidade no Brasil. E é uma DR muito necessária. Temos hoje um planeta urbanizado, em que mais de 50% da população mora em cidades. Num país como o Brasil, onde 90% das pessoas vivem em cidades, isso é ainda mais sério, porque temos um país com a natureza mais rica do planeta, com a maior biodiversidade do mundo, com mais de 49 mil espécies de plantas nativas, e ao mesmo tempo, mesmo com toda essa riqueza, a gente tem cerca de 90% da vegetação usada em paisagismo de origem estrangeira. Isso tem razões culturais profundas e provoca uma série de problemas, que vão desde invasão biológica até uma erosão cultural profunda em que as pessoas não reconhecem e não valorizam o que é delas. Não se têm as plantas nativas como objeto de deleite, de prazer e beleza, e isso reflete na conservação dos remanescentes naturais, porque se as pessoas não entendem aquilo como algo importante, não preservam o que sobrou da natureza, inclusive fazendo políticas públicas ruins.
O que eu defendo no livro é que a gente repense essa realidade herdada, dessa natureza extraordinária, mesmo em um país urbano com cidades feitas para carros, não para pessoas, que atendem interesses privados em detrimento de coletivos, e que têm pouquíssimas áreas verdes — muitas delas, estrangeiras.
Curitiba é uma cidade que tem muitos parques e praças, mas, assim como em São Paulo, a maioria são lugares onde você não consegue ter um espaço de convivência no final de semana sem pegar uma fila. Andando por Curitiba, percebi que você ainda vê muita araucária, mas são todas velhas. É como se você estivesse em uma cidade povoada somente por pessoas com mais de 45 anos, sem crianças, sem adolescentes, sem jovens. Isso acontece porque a legislação de proteção ambiental foi tão forte que deu um tiro no pé. Ninguém quer plantar araucária porque, se plantar, não pode tirar mais, congela o terreno, elas têm medo de ser penalizadas se acontecer algo com a araucária. Em segundo lugar, o paisagismo de Curitiba é quase todo estrangeiro, nos viveiros e até no Jardim Botânico só tem plantas da Europa, da Ásia, da América do Norte. Onde estão as plantas de Curitiba? Os pinheiros bravos, que são lindos, estão escondidos no fundo perto da cerca, onde ninguém vai, enquanto as araucárias estrangeiras estão na frente. É muito grave, é uma erosão cultural, um complexo de vira-lata, como disse o Nelson Rodrigues.
Para a ciência, uma planta nativa é a planta que ocorria naquela região antes da chegada dos europeus. Fronteiras políticas não têm nada a ver com plantas, foi a gente que inventou o que é um país. Às vezes uma planta que vem da Amazônia é mais estrangeira do que uma que vem do Uruguai. Por outro lado, as fronteiras políticas podem trazer um norte, então a proposta é usar mais essas plantas do país e de regiões mais próximas às suas, mas que comece pegando plantas do território brasileiro, porque aí há também a valorização cultural dos biomas locais. Então tem o peso ecológico e o peso cultural, mas a primeira coisa necessária é que tenhamos plantas nativas à venda. Por enquanto, você vai nos viveiros e só encontra aquelas plantas pasteurizadas, que eu chamo de planta “fast food”, porque você encontra em qualquer lugar do planeta.
“Não se têm as plantas nativas como objeto de deleite, de prazer e beleza, e isso reflete na conservação dos remanescentes naturais”
Ricardo Cardim, botânico e paisagista.
A segunda metade do livro traz soluções para os problemas da primeira metade. Primeiro, se informar. Seja numa varanda de apartamento, seja um vaso na sua sala, seja no jardim da sua fazenda, você tem que se informar sobre a origem da espécie. Por exemplo, você pode dar preferência para árvores frutíferas da Mata Atlântica. Se você colocar uma pitangueira, é muito mais legal do que a costela de adão, ela fica feliz na sombra, vai bem em vaso. Ou plantar um palmito Jussara, que é comum no Sul; se você plantar isso na cidade, no quintal do seu prédio, numa área de meia sombra, você constrói um verdadeiro restaurante para os pássaros nativos.
É muito difícil jogar fora um vaso de plantas, cada vez mais a nossa ética nos impede de fazer isso (risos). Então, vamos supor que você mora em prédio e, quando quer se desfazer de sua planta, você a entrega para o seu porteiro. Ele fica super feliz e decide plantar numa praça perto de casa. E aí, um passarinho generalista, daqueles que comem de tudo, come a sementinha, leva para uma área de mata que sobrou no seu bairro, e aquilo ocupa o espaço de 50 espécies nativas em 10 anos. E com isso, ele extermina 100 insetos e 20 pássaros que não têm mais comida e abrigo naquelas plantas das quais eles dependiam. Plantas invasoras chegam a mudar a composição química do solo e impedir que cresçam outras espécies. É uma reação em cadeia tão complexa que começa com aquele vaso lindo que você comprou no supermercado.
Isso já vinha muito forte desde antes da pandemia, os jovens de até 30 anos já estão muito mais antenados sobre a importância do verde, a geração do urban jungle só foi acentuada durante a pandemia, as pessoas viram que o paisagismo do prédio delas não atende ao que precisam, que não pode pisar na grama, não pode subir na árvore, colher uma fruta, e tudo isso foi exposto na pandemia. Não tem como retroceder.
Estamos num momento de transição entre o descaso e o apreço pelo meio ambiente. Temos ainda um certo deslumbre com a sustentabilidade e pouco estudo, o que leva a coisas que poderiam ser bacanas, mas não são. Pode parecer sustentável, mas só é sustentável de verdade se considerar questões como a regionalidade e o aproveitamento de recursos da flora local. Por exemplo: é super “do bem” você falar que tem um minhocário em casa para digerir o lixo orgânico. Poucos sabem, contudo, que grande parte dessas minhocas é europeia e, se jogadas no nosso solo, podem provocar um cataclisma na microflora do solo que é tão importante para o equilíbrio ecológico. Outro exemplo: o bambu é um “must have” da arquitetura sustentável. Mas quase todos os bambus cultivados no Brasil são estrangeiros, sendo que o Brasil tem dezenas de espécies nativas de bambu. Muitos deles, inclusive, são invasores. Temos a obrigação de estudar esse meio maravilhoso que é o território brasileiro antes de produzir recursos, riqueza e tecnologia a partir dele.
Via Gazeta do Povo
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