fbpx

Ao longo da história, a ideia de conforto acompanhou transformações socioculturais, políticas e tecnológicas, e incorporou novas semânticas. Indícios da busca por esta virtude constam do tratado De Architectura, do romano Vitrúvio, que viveu no século 1 a. C.. “Ao listar os três atributos da arquitetura (em latim, firmitas, utilitas e venustas) ele foi além de estabilidade, segurança e funcionalidade, e incluiu venustas, traduzido como beleza, mas que prefiro pensar como atratividade: harmonia, simetria, proporções, enfim, a percepção que temos do ambiente”, analisa a arquiteta Eleonora Zioni, professora do curso Conforto, Saúde e Bem-Estar nas Edificações, do Green Building Council Brasil.

Já o significado de conforto como o conhecemos é mais recente, na visão do arquiteto e ensaísta Francesco Perrotta-Bosch  “No anfiteatro romano você sentava sobre pedras; no teatro de Shakespeare as pessoas ficavam em pé; nos séculos 15 e 16 os leitos eram austeros. Só nas cortes e palácios absolutistas do século 18 começaram a aparecer os estofados de veludo, o acolchoado e toda a lógica de Versalhes, abarcada pela burguesia no século 19 e criticada depois pelos modernistas no pós-guerra”, explica. Perrotta-Bosch conta que Lina Bo Bardi usava de forma irônica o termo comfort, em inglês. “Ela dizia que as cadeiras do Renascimento não tinham acolchoamento e tudo bem. Filhote disso são os assentos do Sesc Pompeia, que trazem elementos mínimos.” Com os modernistas, conforto ganhou duas vertentes principais: o aspecto ambiental e a comodidade – que, por sua vez, desdobraram-se em conceitos como salubridade, eficiência, estética, ergonomia e privacidade.
Hoje, transpondo facetas técnicas e objetivas e incluindo as científicas, vemos a neuroarquitetura estudar os impactos do espaço físico em nosso cérebro. “Entendemos tudo através dos sentidos e sabemos que o desconforto pode causar doenças”, afirma a arquiteta Adrielly Barron, especialista no assunto. “Costumo dizer que conforto é estar em um lugar sem sentir-se estressado.”
Acompanhe, na sequência, com o a visão, a audição, o olfato e o tato interpretam essas noções dentro de casa – e como deixá-la mais agradável a esse sensível radar inerente a todos nós:
VISÃO (ESTE SENTIDO NÃO FUNCIONA SEM A LUZ) – e, nesse universo, a do sol estabelece o ponto de partida. “Ela é a matriz a partir da qual existimos, a referência que todas as tecnologias buscam. Não à toa, os nórdicos fazem terapia de luz para não ficarem deprimidos, e, desde o início da pandemia, imóveis com boa iluminação natural valorizaram”, argumenta o lighting designer Guinter Parschalk. Ademais, pesquisas científicas já mostraram que casas e apartamentos com janelas e aberturas generosas melhoram a produção de melatonina de seus moradores, e, portanto, a qualidade de suas noites: “Sob essas condições durante o dia, nosso sono
profundo pode aumentar 40 minutos”, fala a arquiteta Adrielly. Quando escurece ou se faz necessário para tarefas diurnas, entra em cena a iluminação artificial, em doses calculadas para cada local e função. “Nem sempre a versão amarelada, com baixa temperatura de cor, proporciona mais conforto.
Ela traz apaziguamento, pois remete à luminosidade do amanhecer e do entardecer, mas não se aplica ao home office ou a
cozinha, que exigem mais atenção e concentração”, explica o lighting designer. Na nossa avaliação, temperaturas de cor baixas e amareladas “aquecem” e conferem aconchego, enquanto as mais altas tendem a ser notadas como “frias” e associadas a hospitais
e escritórios (e, portanto, à doença e ao trabalho, o que ajuda a entender por que incomodam em alguns cantos da casa). “Essa interpretação envolve questões culturais e subjetivas.”
Os japoneses preferem a luz fria à noite porque ela lembra a da lua. Aqui, a amarela é mais comum no Sul por causa do clima. No Nordeste, acontece o contrário.” Desde o apagão energético vivido no Brasil há 20 anos, quando lâmpadas fluorescentes tomaram conta de todo o país pela economia que geravam na fatura, a tecnologia evoluiu bastante. “O LED já oferece opções com maior espectro de cor e Índice de Reprodução de Cor (IRC) que se aproxima mais ao da luz natural, o que amplia sua utilização. Com a pandemia e a demanda de flexibilizar o uso dos cômodos ao longo do dia, o projeto luminotécnico deve se adaptar para não perder conforto”, destaca Parschalk.
AUDIÇÃO
A Organização Mundial Da Saúde classifica a exposição ao barulho como o segundo tipo de poluição ambiental que mais afeta a saúde da população, atrás apenas da atmosférica. De acordo com uma pesquisa publicada no British Journal of Psychology em 1998, ruídos de fundo aumentam a produção de hormônios do estresse e prejudicam o sono e o bem-estar das pessoas. “Mesmo assim, pagamos por um bom projeto luminotécnico ou uma cozinha planejada, mas ainda não ligamos muito para a acústica”, pontua o arquiteto Fabio Marins, especializado na área.
A negligência nesse tema era quase uma tradição no mercado imobiliário brasileiro até meados de 2013. Naquele ano, entrou em vigor a NBR15.575, norma técnica da ABNT que obrigou as construtoras a atenderem parâmetros mínimos de desempenho acústico em prédios residenciais. As paredes e lajes entre pavimentos, cada vez mais finas para baixar custos, voltaram a ter espessuras maiores e incluíram materiais isolantes. O texto contempla regras para os materiais aplicados em coberturas de uso coletivo e nas fachadas (a fim de reduzir o som urbano, em especial do trânsito, mas também de estádios de futebol, igrejas e casas noturnas), além dos sistemas de elevadores e hidráulico. “Foi um grande avanço, mas é o mínimo, as leis podem evoluir mais”, pondera Marins. Para edifícios antigos e residências, não faltam soluções tecnológicas, embora o investimento seja bem mais alto na remediação do que na prevenção (na fase de planejamento e obra). “No caso dos ruídos externos, é possível substituir as esquadrias por modelos mais eficientes, com alta vedação, e, em alguns casos, optar por vidros duplos.
Cortinas e persianas ajudam”, diz a arquiteta Eleonora Zioni. Quando o problema vem do vizinho, ela recomenda mantas acústicas no contrapiso ou painéis no teto. Paredes de drywall adquirem mais isolamento com recheios corretos, como lã de PET. No projeto, materiais mais pesados nas paredes, como tijolo maciço e concreto, evitam a transferência de ruído entre os cômodos. Segundo Marins, um dos segredos do silêncio é evitar, no mesmo espaço, superfícies muito lisas. “O trio porcelanato, vidro e gesso, por exemplo, é um prato cheio para o caos acústico, bem diferente de um mix com madeira e tijolinho, mais adequado porque cada elemento apresenta uma absorção distinta. Um tapete, um sofá volumoso e até plantas deixam a acústica mais “agradável”, afirma.
OLFATO – O bolo saindo do forno , o arranjo de folhas e flores sobre a mesa, o chá de capim-cidreira, o couro do sofá. Tudo isso cria, pelo cheiro, atmosferas de aconchego e bem-estar. “O olfato nos manipula porque os aromas sãoprocessados na parte mais primitiva do cérebro. Por eles reconhecemos o mundo. Nesse sentido, a aromaterapia nos leva de volta à natureza, que é nosso padrão ideal para viver bem”, explica Adrielly. Em alta, essa área do conhecimento vem conseguindo inserir o conforto olfativo na lista de desejos
domésticos de muita gente. “A partir dos óleos essenciais em um difusor ou aromatizador elétrico, dá para conquistar um reforço positivo das emoções e trazer relaxamento ao quarto, com lavanda e tangerina, concentração e frescor no home office com algo herbal e prazer na cozinha com o limão”, sugere Sâmia Maluf, psicóloga e aromatóloga.
Segundo ela, os produtos devem ser puros, livres de parabenos, sulfatos, corantes e conservantes para não promoverem o efeito contrário ou causar alergias. Antes de investir nessa frente, porém, vale cuidar do ar interno. “Ele é o mesmo da cidade, poluído. A pandemia trouxe a necessidade de ventilar os interiores e isso acendeu um alerta. Começamos a falar dos ionizadores, circuladores com filtro HEPA [sigla em inglês para alta eficiência na separação de partículas] e outros equipamentos que logo serão básicos”, avalia Leonardo Cozac, engenheiro civil e consultor em qualidade do ar interno, mesma disciplina que ministra no curso do Green Building Council Brasil sobre o tema. Para quem tem ar-condicionado, a manutenção correta é imprescindível. “O mesmo se aplica ao aspirador de pó e àqueles robozinhos que estão bombando na internet. Poucas pessoas trocam o filtro de ar deles, que precisa ser do tipo HEPA, capaz de captar partículas até cinco vezes menores do que a espessura de um fio de cabelo. Se não for assim, melhor passar pano úmido em vez de aspirar e jogar no ar a sujeira que estava quieta no chão”, avisa Cozac.
Nas cozinhas integradas ao living, compensa investir em um sistema de exaustão. “Uma coisa é criar memória afetiva com o cheiro do alho e das ervas refogadas. Outra é sentir cheiro de peixe pela casa”, pondera Sâmia. Odores ruins provenientes de ralos e pias também incomodam. “Ali existe muita matéria orgânica e os efeitos nos moradores dependem da exposição e da sensibilidade de cada um. As instalações devem estar em ordem e higienizadas”, completa Cozac.
Há, por fim, inimigos ocultos: os compostos orgânicos voláteis inodoros que inalamos de tintas, colas, plásticos, produtos de limpeza. “O corpo gasta energia tentando tratar isso e reage com dor de cabeça, fadiga e até doenças mais graves”, alerta Adrielly. Para ajudar a neutralizar esses elementos, uma solução ao alcance de todos, porém ainda debatida pelos cientistas, é a presença de plantas. “Não
existe tecnologia melhor do que elas, que ainda aportam apelo estético e toda a questão de reconexão com a natureza”, finaliza a arquiteta.
TATO – Ligado ao maior órgão do nosso corpo, a pele, este talvez seja o sentido mais suscetível a sensações sinestésicas, como quando tocamos uma madeira e notamos seus detalhes, seu cheiro e algum som, ou encostamos o corpo em uma pedra e sentimos a dureza da superfície e um frio imediato. É tudo sutil, às vezes nem percebemos conscientemente, mas nosso cérebro sim. Em seu trabalho, o premiado designer Jader Almeida afirma explorar essas camadas com muito cuidado e discernimento. “Cada textura vibra em uma frequência. Uma pedra passou por um processo temporal que está em seus veios e falhas geológicas. Tem uma energia de milhões de anos condensada ali. O mesmo vale para a madeira e a lã natural, por exemplo. É uma conexão imediata, diferente do plástico ou do tecido sintético, que são materiais muito mais novos para as pessoas”, argumenta. Adrielly faz coro: “Interações com a natureza trazem muito bem-estar. Por outro lado, é como se nosso cérebro desse erro toda vez que vemos ou sentimos algo sintético em nosso corpo”, diverte-se.
Na visão da designer Heloisa Crocco, os elementos naturais guardam familiaridade com a nossa própria essência. “Cada um tem seu encanto e sua maneira de nos dar aconchego. É só pensarmos no linho, na lã, no algodão, além do fogo, da água, do ar. Em casa, é o piso de madeira, a poltrona que nos abraça, o edredom e o travesseiro de pluma, uma boa aragem. É tirar partido do que está ao nosso redor, do clima tropical, o verde, e projetar pensando sempre em conforto térmico, que é tudo.”E Jader complementa: “O conforto mora nisso tudo, nessa experiência sinestésica que nos toca, em um caminho orgânico, não linear.” Talvez por isso nos faltem palavras para traduzir essa noção tão cara a todos nós. “Eu diria que não é algo para ser explicado, mas sentido. Como escreveu Manoel de Barros em um poema, a importância de uma coisa não se mede com fita métrica, nem com balança, nem com barômetro, mas pelo encantamento que produz em nós.”
________
por, Giuliana Capello, Casa Vogue
Voltar

O que procura?